Lénine e a Revolução, de Jean Salem

A Revolução de Outubro e a construção do socialismo <strong>*</strong>

A publicação de Lénine e a Revolução de Jean Salem, por ocasião dos 90 anos da Revolução de Outubro, pretende ser uma contribuição da Editorial Avante! para estimular o debate em torno dos setenta anos de socialismo real, pois pensamos, como o autor do livro, que «uma [sua] reabilitação muito mais que parcial» «acompanhará como condição necessária o ascenso do próximo movimento revolucionário.» Pelo meu lado, limitar-me-ei a algumas observações em torno da derrota do socialismo na URSS e nos países do Leste europeu.
Intervindo no XIII Congresso Extraordinário, realizado em Maio de 1990, antes ainda do desaparecimento da URSS, resumia assim o camarada Álvaro Cunhal os cinco principais traços negativos presentes na construção do socialismo real: «A substituição do poder popular por uma forte centralização do poder político, cada vez mais afastado das aspirações, opinião e vontade do povo; a democracia política sofrendo graves limitações ao mesmo tempo que se verificava a acentuação do carácter repressivo do Estado e a infracção da legalidade; a edificação de uma economia com centralização excessiva da propriedade estatal, a eliminação de outras formas de propriedade e de gestão, o desprezo pelo papel do mercado e a desincentivação do empenhamento e produtividade dos trabalhadores; o estabelecimento no partido de uma direcção altamente centralizada, de um sistema de centralismo burocrático, com o afastamento progressivo dos trabalhadores e das massas populares e a imposição administrativa das decisões tanto no partido como no Estado dada a fusão e confusão das funções do Estado e do Partido; e finalmente a dogmatização e instrumentalização do marxismo-leninismo e sua imposição como ideologia do Estado.»
Ao apontar estes aspectos negativos, o nosso Partido não deixou, porém, de salientar que, com a Revolução de Outubro de 1917, pela primeira vez na história foi empreendida a construção de uma sociedade liberta da exploração do homem pelo homem – a sociedade socialista; que extraordinários avanços e conquistas revolucionárias foram alcançados pelo povo soviético, os quais se traduziram também em poderoso estímulo e apoio solidário à luta dos trabalhadores dos países capitalistas, assim como à dos povos pela sua independência; que as realizações da URSS e do campo socialista em benefício dos seus povos e dos povos de todo o mundo – nos domínios económico, social, cultural, político, diplomático e militar – são factos que marcaram indelevelmente toda a história do século XX.
Nós, PCP, não alinhamos, pois, na «moda», como dizia Arismendi, de apresentar «os anais do comunismo como um itinerário de erros e tragédias», de fazer uma «história maniqueia ao contrário», nas palavras do mesmo Arismendi, que refere ainda que para essa história contribuíram também «pretensos renovadores que sepultaram com isso a sua própria identidade de comunistas». Não nos revemos, pois, naquilo que com razão Domenico Losurdo diz de «sectores inteiros do movimento comunista internacional»: «é como se um Hiroshima ideológico [lhes] tivesse devastado a capacidade de pensar de maneira autónoma».
Não, foi com toda a autonomia que, quer no nosso Programa aprovado no XII Congresso (Dezembro de 1988) quer no aprovado no XIV Congresso (Dezembro de 1992), «partindo da realidade portuguesa e da experiência revolucionária portuguesa nos seus múltiplos aspectos e assimilando criticamente a experiência revolucionária mundial» «apontamos ao povo português, como seu objectivo, a futura construção da sociedade socialista», da qual consideramos como características essenciais o poder efectivo do povo, a democracia política e as liberdades e direitos dos cidadãos, a propriedade social de sectores básicos em articulação com estruturas económicas diversificadas e a empenhada participação dos trabalhadores na actividade económica, a democracia interna do Partido e a sua estreita ligação aos trabalhadores e às massas, e o desenvolvimento criativo da teoria.
Foi contra «narcisismos da derrota» de proporções quase epidémicas mas sem auto-satisfações utopistas que reafirmámos que «a liquidação da exploração capitalista, o desaparecimento geral e efectivo de discriminações, desigualdades, injustiças e flagelos sociais é tarefa histórica que só com a revolução socialista é possível realizar».

Humanamente exantante

Penso, porém, que não evitámos ser levados nas nossas análises a pôr uma tónica excessiva nas deformações e na derrota do socialismo real e nas suas causas internas – a utilização de conceitos como o de implosão, de colapso ou de «modelo» (ainda que este entre aspas…) revela-o – e fizemo-lo em detrimento da transmissão, sobretudo aos jovens, do que houve de humanamente exaltante e de civilizacional e culturalmente progressivo na tarefa histórica inédita da construção de uma sociedade liberta da exploração; não evitámos a permanência de grandes lacunas na contextualização histórica, interna e externa, da construção do socialismo e na reposição da verdade histórica dessa construção; não evitámos as fraquezas da nossa intervenção ideológica na luta contra as falsificações e caricaturas em catadupa bolsadas pelos nossos inimigos de classe.
Trata-se de debilidades e omissões que não devem ser minimizadas e muito menos deixadas em silêncio. É preciso, isso sim, crítica e revolucionariamente - como é da essência da dialéctica (Marx) - superá-las, sob pena de permitirmos a introjeção nas nossas fileiras das calúnias dos detractores do socialismo e do comunismo, com o consequente desânimo, paralisação, deserção, divisão e integração no statu quo das forças sociais e políticas que podem e devem ser a base de uma transformação revolucionária da sociedade capitalista, necessidade exigida pelas próprias leis que lhe são inerentes.

A vaga persecutória
anticomunista


A participação do camarada Barata-Moura nesta sessão fez com que me lembrasse, a propósito do que anteriormente referi, do que ele em Janeiro de 1992 escreveu a propósito da campanha anticomunista então (e hoje) em curso que visava (e visa) objectivos ambiciosos. Ele caracterizava-os assim:
«- uma erradicação do comunismo da consciência e do sentir dos homens, atrelando-os à simbólica representação de um sonho que se desvaneceu,
«- um embotamento da capacidade de luta daqueles que continuam a sofrer e a rejeitar a fatalidade da exploração,
«- uma oclusão e um estreitamento do próprio leque de perspectivas que a humanidade diante de si tem para as tarefas de configuração do seu futuro.»
Eu hoje acrescentaria um quarto objectivo (penso que o Barata-Moura estará de acordo comigo) que é uma criminalização das concepções e da acção histórica dos comunistas preparando o terreno para uma vaga persecutória contra eles, à medida que se agudizem as contradições inerentes ao modo de produção capitalista e sobrevenham tempos de crise.
Mas voltemos ao texto de Barata-Moura.
«O que a gravidade dos tempos nos impõe», escrevia ele, é «questionar comunistamente o comunismo». O que significava, e passo a citar:
«- empreender um estudo concreto (multilateralmente informado e reflectido) dos processos (e respectivas inflexões) ao longo das quais estas experiências históricas de reconfiguração socialista do viver se materializaram e vão des-construindo;
«- investir com seriedade e urgência numa investigação aprofundada e prospectiva do novo quadro mundial (e diversificadamente nacional também), no sentido de melhor compreender – não só a sua essência geral, mas as formas determinadas (económicas, políticas, sociais, culturais) que manifesta – e de nele descortinar o leque reajustado de possíveis que continua a pro-jectar;
«- não capitular, nem abrandar, na frente do esclarecimento e mobilização das forças sociais que estão objectivamente em condições – pelos seus interesses, pelas suas aspirações, pela sua luta – de influenciar e de protagonizar desenvolvimentos que apontam ao revolucionamento estrutural do modo actualmente vigente de produzir e reproduzir o viver conjunto da humanidade.»
Julgo que nenhum de vocês negará o acerto e a pertinência destas palavras. Vale a pena lê-las desenvolvidamente no seu livro Materialismo e Subjectividade. Estudos em torno de Marx.

* Intervenção proferida na sessão de lançamento do livro de Jean Salem


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